A sociedade, conforme Georg Simmel[1] (2006) demonstra, emerge a partir da formação de uma
complexa rede de interação entre indivíduos, impulsionada por diversas
motivações como paixão e desejo, que são exemplos do que esse berlinense
atribui como constituintes das matérias e conteúdos da vida social. Portanto,
na essência, a sociedade se decorre de um emaranhado de ações e reações,
desenvolvidas no cotidiano das diversas formas e conteúdos das relações
sociais.
Logo, a sociedade é estabelecida como
o produto das manifestações de contato social, na medida em que “os indivíduos
estão ligados uns aos outros pela influência mútua que exercem entre si pela
determinação recíproca que exercem uns sobre os outros” (SIMMEL, 2006, p.17).
A constante troca de influencias entre
os indivíduos ocorre em virtude das experiências vividas no cotidiano e se
manifesta por diversas razões e motivações. É o elemento fundamental que
concebe a formação de uma sociedade.
Segundo o pensamento de Simmel, “o
mundo social pode ser considerado a partir de diversos ângulos e enfoques à medida
que envolve um encadeamento de ações que se relacionam” (PERES, 2011, p. 97),
em virtude das inúmeras formas e conteúdos que constituem os elementos da vida
social.
Instintos eróticos, interesses objetivos, impulsos religiosos, objetivos de defesa, ataque, jogo, conquista, ajuda, doutrinação e inúmeros outras situações fazem com que o ser humano entre, com os outros, em uma relação de convívio, de atuação com referência ao outro, com o outro e contra o outro, em um estado de correlação com os outros. Isso quer dizer que ele exerce efeito sobre os demais e também sofre efeitos por parte deles. Essas interações significam que os portadores individuais daqueles impulsos e finalidades formam uma unidade – mais exatamente, uma sociedade (SIMMEL, 2006, p. 60).
Não obstante muitas dessas
manifestações relacionais possuírem conteúdo de caráter conflituoso, em razão
da colisão de interesses individuais, Simmel interpreta a disputa como fator
positivo para todo o corpo social, na proporção em que tal situação seja
dirimida mediante acordo, pois significaria a sofisticação da consciência do
individuo como parte integrante de uma unidade coletiva.
Sendo o interagir social entre indivíduos
um processo que marca o ponto fundamental de uma sociedade, são as mútuas ações
e reações entre os seres humanos em decorrência de sua existência física em
determinado momento e território que permitem afirmar que há a plena
configuração de uma sociedade.
Assim, pode-se dizer que “sempre que
houver indivíduos que se encontrem em reciprocidade de ação – seja ela
permanente ou passageira, seja ela com, contra ou pelos outros, pode-se falar
em sociedade” (PERES, 2011, p. 99). Desse modo, a intensidade da interação
entre os indivíduos que compõem o grupo é diretamente proporcional à
caracterização de uma unidade social, ou seja, quanto mais vigorosa a interação
entre o grupo, mais ele se constitui em uma sociedade.
Para o pensamento simmeliano, as
manifestações sociais reciprocamente estabelecidas compreendem a essência de
uma sociedade, em um processo de constante construção, desconstrução e
reconstrução (PERES, 2011, p. 98). Seguindo essa premissa, o termo sociação[2] é estabelecido por Simmel para definir
um processo que começa a existir a partir do momento em que os indivíduos
passam a interagir e a adotar sistemas de cooperação e colaboração, mesmo que
seu conteúdo careça de um caráter social caso considerado isoladamente.
A sociação é, portanto, a forma (que se realiza de inúmeras maneiras distintas) na qual os indivíduos, em razão de seus interesses – sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente determinados, se desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se realizam. Esses interesses sejam eles sensoriais, ideais, momentâneos, duradouros, conscientes, inconscientes, causais ou teleológicos, formam a base da sociedade humana. (Simmel, 2006, p. 60).
Enquanto processo fundamental da
constituição de uma sociedade, a sociação pode ser compreendida como aquilo que
tem a capacidade de propiciar a emissão ou recepção, tanto de uma ação física
quanto da influência exercida por outro individuo. Para Simmel, a sociação
comporta uma distinção entre forma e conteúdo, sendo que este é constituído dos
elementos intrínsecos aos seres humanos que os tornam capazes de se relacionar
com seus semelhantes por interesse ou motivação. Em outras palavras, conteúdo e
matéria da sociação é “tudo o que existe nos indivíduos e nos lugares concretos
de toda realidade histórica (...) tudo o que está presente nele de modo a
engendrar ou mediatizar os efeitos sobre os outros, ou a receber esses efeitos
dos outros” (Simmel, 2006, p.60).
Esses elementos fundados em interesses
e motivações dos indivíduos, assim como já dito, se considerados isoladamente
não possuem caráter social, pois que apenas se estabelecem como elementos da
sociação a partir do momento em que podem ser definidos como meio de interação
que estabelece um elo entre ambos os agentes da relação social.
Mas as motivações, impulsos e interesses, só constituem os elementos do fenômeno da sociação quando idôneo a ensejar a formação de uma sociedade, no instante em que torna possível a interação entre os indivíduos e oportuniza a transformação de um aglomerado de pessoas isoladas em “formas de estar com o outro e de ser para o outro”, nas quais os indivíduos vão se vincular e influir uns sobre os outros. (PERES, 2011, p. 102).
No entanto, Simmel verifica que os
conteúdos da vida social se tornam autônomos e indissociáveis do “objeto que
formaram exclusivamente para seu próprio funcionamento e realização” (2006, p.
61). Ocorre que as formas do material que tomamos do mundo são elaboradas com
arrimo em condições e necessidades práticas. A partir daí, em virtude de
determinados propósitos, é dado a este material determinada forma que por sua
vez é utilizada como elementos da vida social.
Porém, certos conteúdos da vida social
perdem seu uso prático habitual e se libertam, em determinada medida, do
serviço à vida que originariamente estava vinculado, passando então a se tornar
autônomo e a possuir um valor em si mesmo “e não em função da legitimação de
outra instância superior e extrínseca que ditaria como se deve formar a matéria
da vida” (SIMMEL, 2006, p. 62).
O que é autenticamente “social” nessa existência é aquele ser com, para e contra os quais os conteúdos ou interesses materiais experimentam uma forma ou um fomento por meio de impulsos ou finalidades. Essas formas adquirem então, puramente por si mesmas e por esse estímulo que delas irradia a partir dessa liberação, uma vida própria, um exercício livre de todos os conteúdos materiais; esse é justamente o fenômeno da sociabilidade. (SIMMEL, 2006, p. 64).
Definida por Simmel como sendo a
“forma lúdica da sociação”, a sociabilidade por sua vez é a forma pela qual os
indivíduos constituem uma unidade no intuito de satisfazer seus interesses,
onde forma e conteúdo são na experiência concreta processos indissociáveis (Simmel, 2006, p. 65). Enquanto que no
processo que constitui a sociação as formas assumidas pelos elementos
constitutivos da vida social acarretam na determinação da forma em razão do
conteúdo, no fenômeno da sociabilidade a forma constitui seu próprio conteúdo,
com finalidade em si mesmo.
O ponto fundamental não é o objetivo
pelo qual o grupo se forma, mas o interesse e o prazer embutido na própria
união social dos indivíduos; o sentimento de pertencimento a determinado grupo,
não importa o objetivo de seu agrupamento.
Presente em situações tão diversas
quanto “reuniões econômicas, irmandades de sangue, comunidades religiosas,
bandos de bandidos”, que apesar de motivações e interesses distintos, bem como
conteúdos específicos, guardam a semelhança fundamental da sociabilidade, pois
“todas essas formas de sociação são acompanhadas por um sentimento e por uma
satisfação de estar justamente socializado, pelo valor da sociedade enquanto
tal” (SIMMEL, 2006, p.64).
Determinadas experiências da vida
cotidiana podem ser apontadas como exemplos por excelência do que Simmel
descreve por sociabilidade: “Sair, jogar conversa fora, namorar, encontrar com
os amigos, em geral, não têm outro fim principal senão o prazer e o sentimento
de estar junto e de ‘praticar’ a própria sociação” (PERES, 2011, p. 105).
Wacquant (2002) desvela um exemplo
sobre uma das maneiras em que a sociabilidade se expressa no interior de um
centro de treinamento de boxeadores localizado na Cidade estadunidense de
Chicago nos anos 1980, ao longo de sua busca pela compreensão do emaranhado das
relações sociais e construções simbólicas lá surgidas:
Escudo protetor contra as tentações e os riscos da rua, a academia de boxe não apenas é o local de um exercício rigoroso do corpo; ela também é suporte do que Georg Simmel chamou de “sociabilidade” (Geselligkeit), esses processos puros de associação que têm seu fim neles mesmo, essas formas de interação social no limite desprovidas de conteúdo ou dotadas de conteúdos socialmente anódinos. (...). Tudo se passa, de fato, como se um pacto de não agressão governasse as relações interpessoais e excluísse da conversa todo o tema “sério”, capaz de atentar contra essa “forma lúdica de socialização” (...). (WACQUANT, 2002, p. 56).
O jogo erótico presente na coqueteria
é exposto por Simmel como “realização mais leve, lúdica, e também a mais ampla”
da sociabilidade (2006, p. 72). Coquete é a pessoa que empreende esforços para
despertar a admiração e o interesse alheios, que se utiliza de excessivo
cuidado quanto a sua forma física, estética e demais apetrechos
ornamentais. O exercício de seu poder de atração erótico não guarda a
verdadeira pretensão de consumar o ato insinuado, oscilando seu comportamento
entre o sim e o não, sem uma definição quanto a seu real interesse.
A coqueteria é explicada por Simmel
como “o jogo da ironia e do gracejo com o qual o elemento erótico ao mesmo
tempo desata os puros esquemas de suas interações de seu conteúdo material ou
totalmente individual” (2006, p. 74). Há alternância entre indícios de atração
e repúdio nas encenações que constituem os atos típicos de sedução, sem chegar
a uma decisão definitiva, que mantem presentes as condições pró e contra a
consumação das expectativas produzidas no agente seduzido.
Segundo Simmel, “assim como a
sociabilidade joga com as formas da sociedade, a coqueteria joga com as formas
do erotismo – uma afinidade de essências que de certa maneira predestina a
coqueteria a ser um elemento da sociabilidade” (SIMMEL, 2006, p. 74).
Na sociabilidade há um processo que a
torna um fim em si mesmo. Forma e conteúdo se fundem e se definem, constituindo
um fenômeno social que prescinde de uma razão, interesse ou motivação
extrínseca para sua ocorrência no interagir entre os indivíduos.
NOTAS:
[1] PERES et al (2011, p. 94) destaca que
apesar de não ser atribuído a Simmel o mesmo prestígio dado a seus
contemporâneos Marx, Durkheim e Weber, sua obra “a filosofia do dinheiro”, de
1900, merece reconhecimento como uma das principais obras que deram base ao
pensamento sociológico.
[2] Em alemão “Vergesellschaftung”
tradicionalmente traduzido para o idioma português como “sociação” (PERES,
2011, p. 98).
REERÊNCIAS:
PERES, Fabio de Faria et al. A ‘sensibilidade’ de Simmel:
notas e contribuições ao estudo das emoções. RBSE 10 (28): 93-120, ISSN
1676-8965, abril de 2011.
SIMMEL, Georg. (2006). Questões fundamentais de
sociologia: individuo e
sociedade. Tradutor Pedro Caldas. Rio de Janeiro: Zahar.
WACQUANT, Loic. (2002). Corpo e alma: notas
etnográficas de um aprendiz de boxe. Trad. Angela Ramalho. Rio de Janeiro:
Relume Dumará.]
Glalber Queiroz é Mestre em Segurança Pública, Especialista em Direito Público e Graduado em Direito. E-mail: glalberqueiroz@gmail.com
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