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terça-feira, 5 de julho de 2016

RESENHA: ESTADO AUTORITÁRIO E IDEOLOGIA POLICIAL


PEDROSO, Regina Célia. Estado autoritário e ideologia policial. Coleção Histórias da Intolerância - Intolerância Étnica & Intolerância Política. v. 06. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, 210 p.
O exercício do poder político no Estado brasileiro esteve restrito a poucos, na proporção em que se pode verificar sua concentração em torno de determinados grupos de indivíduos. Historicamente marcado como centralizador e autoritário, tanto em períodos ditatoriais quanto em períodos democráticos, a atividade estatal direcionou especial atenção ao atendimento de certos interesses, sobremaneira aos da chamada elite conservadora.
Ao se analisar desígnios constitucionais do aparelho policial, pode-se perceber que as instituições policiais estiveram voltadas para a manutenção do ordenamento social através do controle do individuo inserido no espaço púbico, do combate à criminalidade e ao controle de distúrbios, no que pode ser definido como sendo a busca pelo ideal de saneamento social e segurança nacional.
Essas atribuições lhe foram legitimadas pela legislação e pelos textos constitucionais brasileiros, que em maior ou menor medida, incumbiu à instituição policial da defesa da normalidade social, dentro dos parâmetros estabelecidos pela classe dominante.
Essas são algumas das afirmações que podem ser extraídas da obra de Regina Célia Pedroso, que revela por meio de uma análise histórica, que o autoritarismo institucional se relacionou diretamente com a trajetória da instituição policial no Brasil, como parte fundamental de uma estratégia para manter alguns segmentos do corpo social à margem do exercício efetivo da cidadania.
A partir de um trabalho analítico, a autora se debruçou sobre diversos documentos desde as constituições que vigentes no Brasil imperial, até as legislações e doutrinas jurídicas, que segundo ela formaram a sustentação teórica para a ação policial ao longo do período estudado. Desta forma, a autora revela um amplo histórico da evolução da instituição policial no Brasil, com atenção especial voltada a polícia paulistana.
A autora revela que as ações das instituições policiais se apoiam em diretrizes baseadas na ordem constitucional vigente, justificadas a partir da definição dos conceitos de ordem pública e segurança interna. Em dados momentos da história brasileira, o aparato policial serviu como uma espécie de instrumento de repressão política e civil, que tinha por finalidade evitar a possibilidade de uma ruptura social e garantir a continuidade do modelo governamental em vigor.
Neste contexto, aborda como as instituições policiais produziram uma ideologia própria, profissionalizaram-se e diversificaram sua atuação de acordo com o contexto político e social de cada época, estabelecendo a partir de então a perseguição aos “inimigos”, que eram estabelecidos por via legal.
O livro é dividido em quatro capítulos e o prefácio é por conta do Professor Dalmo de Abreu Dallari. Ao longo de suas páginas, a autora investiga desde a origem da instituição policial pelo colonizador português ao se fixar em solo brasileiro, até o cenário da última década do século XX, marcado por exemplos tanto de ruptura quanto de continuidade no Brasil de diversas formas de seu gerenciamento, verificados ao longo dos anos. Assim são expostos os fatores presentes no desenvolvimento ideológico das polícias, além das múltiplas formas de organização presentes ao longo de sua história.
O primeiro capítulo é marcado pela discussão sobre dois conceitos doutrinários importantes para o entendimento do pensamento policial. Segundo a autora, as definições de ordem pública e segurança interna definem preceitos de legalidade e possuem conotação excessivamente ideológica em nossa sociedade.
A importância de se delimitar corretamente a definição desses conceitos se deve ao fato de que eles são a base para justificar a construção de um ambiente favorável ao controle das massas. Segundo a autora, a definição do conceito de Ordem Pública é, em sua concepção material ou objetiva do Direito, uma circunstância de fato ou um fim do ordenamento político e estatal, inspiradas por doutrinas ideológicas ou princípios políticos doutrinários.
Tal parâmetro, entretanto, não leva em conta apenas a realidade presente do momento político, mas uma realidade hipotética, idealizada pelos homens de poder com o apoio de uma elite intelectualizada. Na prática, este conjunto de regras visam a garantir certa estabilidade as relações políticas, econômicas e sociais, garantindo a ação repressiva de um grupo de indivíduos ou instituições.
Neste sentido, o conceito de ordem pública está ligado a determinadas situações, definidas pelos indivíduos detentores do poder hegemônico como de normalidade social, demandando assim a preservação dos valores e da moralidade sociais, considerados fundamentais.
Balizados pela liberdade alheia, os valores e a moral devem levar em conta a construção de um modelo de organização social que estabeleça um padrão de ordem, enquanto que o direito se encarrega de apontar seus desviantes.
Assim, o direito de atuação da polícia a partir da prerrogativa do uso da força, seria a resultante da impotência do Estado em fazer com que a ordem jurídica seja obedecida voluntariamente. Logo, para fazer com que o ordenamento jurídico seja plenamente acatado, a polícia tem o dever de intervir diretamente no controle do cidadão, quando os fins jurídicos regulamentassem tal intervenção.
Conforme a autora expõe, enquanto órgão derivado do direito, a polícia tem por essência de seu funcionamento a manutenção da segurança e da ordem social, com o dever de intervir justificado por questões de segurança.
Neste diapasão, a autora revela que ser fundamental a conceituação do criminoso, estabelecida a partir da constituição de um universo de exclusão social, que se possam definir quais as condutas deveriam ser reprimidas, ao passo que indica aqueles que seriam os perseguidos. Esta definição levaria em conta uma série de padrões comportamentais determinados, bem como a sua utilidade econômica e eficiência politica.
A garantia da ordenação da sociedade, segundo a autora, derivam de aspectos concretos que visam à ordem politica, a organização perfeita do modelo econômico e o estabelecimento comportamental que perpassa a todos os grupos sociais. Desta feita, haveria a necessidade de um forte aparato para o controle social que mantenha os marginais em uma situação que garanta a Ordem Social vigente, que se apresenta umbilicalmente interligada ao conceito de ordem/desordem.
A autora disserta que, historicamente, os desígnios constitucionais do aparelho policial sempre estiveram prioritariamente voltados para a manutenção do ordenamento social através do controle do individuo inserido no espaço púbico, do combate à criminalidade e ao controle de distúrbios, no que a autora define como sendo a busca pelo ideal de saneamento social e segurança nacional.
Já no final do capítulo inaugural de sua obra, a autora traça de forma mais pormenorizada o histórico da evolução da instituição policial em terras brasileiras, com especial atenção aos acontecimentos ocorridos no estado de São Paulo. Destaca-se, o treinamento pela Missão Francesa, que militarizou e profissionalizou a Força Pública Paulistana a partir de 1906. Daí em diante, a polícia desvia de sua função e se aproxima dos desígnios do Estado para a manutenção da ordem pública, passando a ser vista como garantidora da segurança pública.
Nesse período, relata a autora, fora inaugurada uma nova era na história da instituição policial, devido a inúmeras inovações operacionais e tecnológicas que subsidiaram sua designação de “pequeno exército paulista”, tanto que a Força Policial participou ativamente na Guerra do Paraguai, na Campanha de Canudos e na Revolução Farroupilha.
A autora destaca que com a República, as policias se firmaram como mantenedoras da ordem social e política, através das diretrizes implantadas desde o século XIX, como pequeno exército estadual ao debelar possíveis oposições políticas. Desta feita, a defesa da ordem pública passa a ser a tônica histórica de repressão policial aos movimentos populares.
O segundo capítulo revela aspectos da legislação que tipificou o crime político no Brasil. A autora analisa o crime político na legislação internacional e sua influência nas normas legais brasileiras, a partir das quais se estabelece um paralelo entre o conceito de crime político e social, presentes no discurso de juristas brasileiros. Conforme explanação da autora, os conceitos de crime político e social variaram de acordo com o momento histórico, incidindo sobre as práticas e estratégias policiais, aplicadas na exclusão social de certas camadas da população.
É a partir da república que a repressão política e social se torna prática rotineira, por meios violentos, mas com respaldado na lei. O Estado então mobiliza todas as instituições envolvidas na segurança pública para conter a ameaça social, definida através da elaboração dos parâmetros da perseguição. Os inimigos da ordem deveriam então ser perseguidos e reprimidos.
A ideologia política foi de fundamental influência nas ações da policia como mantenedora da ordem pública pela consecução das leis, das diretrizes políticas do Estado, sua automanutenção e promoção. Sob o lema ordenar para progredir, a elite republicana se apresentava como motor propulsor da ordem e canalizadora do caos, pretendendo com isso edificar uma nação essencialmente a partir de seus próprios anseios, sem a participação popular na transformação política.
Os conceitos de ordem pública e a segurança interna fundamentavam a legislação repressiva que permitia circunscrever os segmentos marginalizados da sociedade. A polícia diária deveria então agir com a finalidade de preservar a ordem e os valores burgueses. Portanto, sua função essencial era de controle sobre aqueles que não estavam enquadrados nesta ordem.
Tal entendimento se afere, de acordo com a autora, nos conflitos surgidos pela necessidade do embelezamento das cidades, visto que de acordo com raciocínio da burguesia esta compreende uma etapa do processo civilizatório, demandando a intervenção no espaço urbano para a expulsão da população pobre, encaminhando-os para a periferia. Delimitando a liberdade de residência das camadas mais pobres a policia fora responsabilizada pela manutenção do ordenamento físico dentro do perímetro urbano das cidades.
Neste capítulo de sua obra a autora ainda reconstitui o histórico de diversos regulamentos que criaram e reformaram o Deops/SP, tendo como eixo temáticos deveres do policial em sua prática diária, com vistas a elucidar a estrutura de poder e a articulação entre seus membros. A Delegacia de Ordem Política e Social - Deops foi instituída na primeira metade do século passado, para a prevenção e repressão das infrações que atentavam contra a existência da política e da república, dentre outras competências.
A atuação do Deops dispõe a autora, era legitimada por meio de edição de leis. Essa legislação previa dentre outras questões um rol de criminosos em potenciais, dentre os quais: revolucionários, contestadores, sindicalistas, estrangeiros, operários, anarquistas e os subversivos. Segundo o discurso oficial, seriam essas categorias de indivíduos as responsáveis pelas mazelas da sociedade, influenciando negativamente na vida social da época. Assim, buscava-se justificar e legitimar a repressão, sob a bandeira do inimigo interno, como um método eficaz para retornar a sociedade ao seu status de normalidade.
Outro ponto destacado pela autora, diz respeito ao gerenciamento de cárcere político realizado pelos próprios policiais do Deops, iniciado nos anos 1924. Assim, a polícia política fora designada para atuar ao longo de todo o processo das ações voltadas a repressão, fiscalização e observação daqueles indivíduos designados como suspeitos e criminosos em potencial. Sendo estendido, inclusive, o dever de executar a pena uma vez que o criminoso ficava sob sua guarda.
Ao final do segundo capítulo, a autora assevera que na primeira metade do século XX, o olhar vigilante da polícia política se constituía a partir de universo de exclusão edificado por meio de leis que moldavam um inimigo objetivo a ser estigmatizado e perseguido pelo Estado. Essas ações culminaram na materialização, ao longo do resto do século passado, do subversivo brasileiro como o individuo nocivo às instituições do Estado, quase sempre associado às classes populares. Tais fatores contribuíram para transformar a desconfiança na essência do pensamento policial, potencializada através de discursos de desqualificação dos ideais opositores, com o intuito de estigmatizá-los como cidadãos de segunda classe ou mesmo não cidadãos, acarretando em um contexto social e político opressivo da sociedade.
No terceiro capítulo, a autora expõe uma reconstituição de parte da lógica policial relativa às suas ações investigativas, a composição das provas do crime, as estratégias governamentais para encerrar os inimigos políticos e as formas de delação, que afirma como sendo práticas comuns em regimes autoritários e nacionalistas.
Logo no inicio do capítulo, a autora aponta para a perseguição ao comunismo nos anos 1930, como elemento essencial a edificação do Estado nessa época. O combate ao comunismo era o principal argumento utilizado para buscar legitimar as intensas ações políticas autoritárias e injustas, no que tange aos segmentos sociais mais baixos.
Segundo a autora, as ações travadas no intuito de repelir a ameaça comunista aconteciam de forma conjunta ao enfrentamento ao inimigo social, especialmente entre os anos 1920 e 1930. Assim, as instituições policiais foram tomadas por ideologias nacionalistas, expressas a partir de ideais conservadores e moralizantes, direcionando suas ações a busca da eliminação de qualquer modelo de organização contrária a esse fim.
Dentre as ações empreendidas no combate ao inimigo político e social, a autora destaca o trabalho desempenhado pelos agentes do Deops, que se utilizava de diversas estratégias a fim de levantar os meios comprobatórios capazes de justificar a identificação de determinado indivíduo como inimigo. Buscava-se, sobretudo, relacionar as atividades do suspeito investigado ao comunismo internacional.
Nesse diapasão, a autora demonstra que a polícia política foi peça fundamental para o Estado autoritário que se constituía no Brasil na década de 1930. O enfrentamento ao inimigo político e social foi evoluindo paulatinamente a partir dos anos 1920, culminando na reestruturação das instituições policiais de maneira ampla, a fim de melhor servir aos ideais nacionalistas da época. A ação policial passou a ser o instrumento principal para exercício do poder no Estado interventor para o controle social, disciplinar a população e coletivizar as atitudes.
Ao encerrar o terceiro capítulo, a autora afirma que a lógica policial foi construída a partir do trabalho investigativo diário, que busca identificar o inimigo interno, sobretudo a partir de suas atitudes e comportamentos. Estas ações, ao incorporar as diretrizes ideológicas do regime político, se dirigiam a repressão em massa aos inimigos políticos, justificando o aprimoramento de um sistema repressivo de poder e alcance ilimitado, instaurando o terror com a finalidade de tornar a população amedrontada.
No quarto e último capítulo de sua obra, a autora aborda as perspectivas atuais do aparato policial. Inicialmente, aborda a estruturação das instituições policiais durante as primeiras duas décadas do século XX, moldadas a partir da ideologia militar, que continuou a se desenvolver ao longo dos anos seguintes.
Com o advento dos governos militares no Brasil (1964-1985), o Exército passa a ser sua principal força repressiva, enquanto que a polícia política recebe um papel coadjuvante. Nesse cenário, a polícia tem minimizado suas funções enquanto órgão monopolizador e centralizador das ações voltadas à ordem pública.
Todavia, durante o regime militar as instituições policiais foram fiscalizadas pelo Ministério do Exército, que controlava desde o efetivo até o material bélico, os currículos dos cursos e formação dos policiais. Destarte, a autora dispõe que a Policia Militar nasce sob a égide da repressão política, com o dever de exercer a vigilância do cidadão comum. Seriam essas, segundo a autora, as bases de uma formação ideológica própria.
A autora avança ao expor que essa ideologia policial produzida em uma estrutura militar precisa ser revista, na medida em que sua convivência com medidas repressivas questionáveis colidem com as diretrizes de uma sociedade que busca a ampliação de seu caráter democrático. Destaca assim, o ideal de policiamento comunitário surgido pelo advento da democratização.
Pautado na presença pessoal mais efetiva junto à comunidade da qual está inserido, o policiamento comunitário tem arrimo na ideia de que o conhecimento da comunidade leva o policial a melhor servi-la. Este forma de policiamento foca na prevenção como forma de atuar frente às manifestações criminais, não apenas se restringindo a ações repressivas. Por essa ótica, conforme expressa a autora, o policial passa a ter um papel de estrategista social na resolução dos problemas comunitários.
Segundo a autora, o sucesso do policiamento comunitário depende de ações que organize e valorize os espaços sociais, que associe o controle formal do Estado e o controle informal da comunidade na redução dos delitos. Assim, as instituições policiais passam a ser guardiãs da sociedade, à medida que proporcionam a consolidação de seu papel enquanto sociedade democrática.
A autora exemplifica essa atuação associada, ao tratar da criação no Estado de São Paulo de Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs), criados no ano de 1985 com a finalidade de associar as pessoas para elaboração de ações frente aos problemas de segurança pública em seus locais de moradia.
Ademais, a autora expõe uma série de exemplos bem sucedidos da atuação do policiamento comunitário, como é o caso dos programas instituídos nos anos 1990 em Nova Iorque, em Tóquio e em Bangalore. No cenário nacional, destaque para as experiências de policiamento comunitário bem sucedidos ocorridos em Guaçuí (ES), Uberlândia (MG) e Ribeirão Preto (SP).
Ao final do último capítulo de sua obra, a autora dispõe acerca da preocupação por parte da Organização das Nações Unidas (ONU) em estabelecer princípios a serem seguidos pelas corporações policiais em suas ações. Neste sentido, desvela três resoluções internacionais aprovadas perante sua Assembleia Geral, em que estão previstas questões desde a maneira como o policial deve atuar até acerca do uso de armas letais.
Antes do fim, a autora expõe sua preocupação em relação às ações de policiamento da última década do século XX, pois conforme verificou, permanece viva em algumas instituições policiais uma mentalidade autoritária. No entanto, comemora ao destacar que há na difusão das ideias de policiamento comunitário como um instrumento de mudança e melhoria na prestação dos serviços de segurança pública no Brasil.
A autora finaliza sua obra com colocações relativas às atitudes do policiamento no final do século XX, pois uma de suas principais preocupações diz respeito à discussão acerca da prevalência da mentalidade autoritária nas instituições policiais atuais e as modificações em contrário, derivadas do policiamento comunitário.
Para a autora, a discussão no meio acadêmico e intelectual, no tocante a atuação das instituições policiais no Brasil, devem focar na construção da democracia, como uma maneira de se opor a continuidade das práticas autoritárias por parte das instituições de controle social, exemplificadas na polícia e no sistema penitenciário.
Segundo a autora, não houve no Brasil a consolidação do projeto democrático implantado nas últimas décadas do século XX, pois sua efetivação exige que alguns atores sociais sejam devidamente integrados aos processos de exercício da cidadania plena, em especial os negros pobres, vistos como pertencentes a um tecido marginal a quem são dirigidos à culpa a violência presente nas ações de algumas instituições estatais.

Glalber Queiroz é Mestre em Segurança Pública, Especialista em Direito Público e Graduado em Direito. E-mail: glalberqueiroz@gmail.com.  



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